
O norte-americano Reuben Fine, além de um dos melhores jogadores do mundo na primeira metade do século XX, também foi um respeitado acadêmico nas áreas da Psicologia e da Psicanálise. Ele escreveu “The Psychology of the Chess Player”, que continua sendo uma importante referência sobre o assunto. Parte desse livro encontra-se traduzida em um capítulo da obra Psicologia e Xadrez, de Júlio Lapertosa; as citações diretas deste artigo foram retiradas dessa tradução.

Fine observa que o xadrez é um jogo de competição no qual há espaço para satisfazer o narcisismo. Mais do que isso, ele está relacionado com a rivalidade entre filho e pai (o Complexo de Édipo); “inconscientemente, dá ao menino uma chance de dizer ao pai: ‘para o mundo lá fora você talvez seja grande e forte, mas quando estamos jogando você é tão fraco quanto eu e precisa de proteção, tanto quanto eu’ ” (p. 82).
Além da competição que o xadrez, assim como qualquer jogo, proporciona, existe uma singularidade que o distingue, que é o papel do rei. Tudo gravita em torno dele; o objetivo dos jogadores de xadrez é dar xeque-mate, ou seja, colocar o rei adversário sob ataque de modo que ele não possa sair desse ataque. O rei não pode ser capturado como as outras peças: ele é especial e insubstituível. Teoricamente, é possível ter nove rainhas, dez torres, dez cavalos ou dez bispos, como resultado da promoção de peões, mas somente um rei é permitido. Todas essas características fazem lembrar dos chefes primitivos descritos em Totem e Tabu, de Freud, que eliminavam qualquer competição contra o próprio controle sobre a família. Também lembram dos déspotas orientais, não à toa: Fine aproveita para citar a origem do xadrez, que surgiu na Índia, foi descoberto pelos persas, sobreviveu depois que a Pérsia foi conquistada pelos muçulmanos e foi levado por estes até a Europa. O funcionamento do rei reflete a história do jogo.
Não obstante toda a sua importância, o rei, curiosamente, é uma peça fraca; seus poderes são limitados. Enquanto uma peça menor (cavalo ou bispo) vale três peões, uma torre vale um bispo ou um cavalo mais dois peões e assim por diante, o rei é apenas um pouco mais forte do que um peão, mas não tão forte quanto qualquer uma das peças. Por essa razão, ele deve se esconder em seu castelo (Fine lembra da palavra em inglês para roque, que é “castle”) e lá permanecer até que peças já tenham sido trocadas o suficiente para que seja seguro ativar o rei.
Em nenhum outro esporte ou jogo de tabuleiro há uma peça tão destoante das outras. No jogo de damas, por exemplo, a dama é simplesmente uma peça diferente, com alguns poderes adicionais, que pode ser capturada como as demais. O rei faz do xadrez uma experiência única.
Ele é a figura central do simbolismo do jogo. Segundo Fine, pode ser identificado por pessoas que se consideram indispensáveis e insubstituíveis, mostrando-se como um escape para conflitos narcísicos. E, para meninos, pode representar a figura paterna, com toda sua influência, mas necessitando de proteção com suas fraquezas expostas e sujeito a ataques.
Os peões, por sua vez, representam as crianças. Eles são promovidos quando chegam à oitava horizontal, mas não para rei. “Simbolicamente, esta restrição à promoção do peão significa que o aspecto destrutivo da rivalidade com o pai é realçada, enquanto o lado construtivo, o que permitiria ao menino se tornar como o pai, é desencorajado” (p. 83).
Para encerrar o artigo, a rainha se apresenta como a mulher, a peça-mãe. Essa poderosa peça foi introduzida no xadrez na Europa do século XIII, um reflexo das diferentes atitudes em relação às mulheres de leste a oeste. É interessante notar que o ataque ao rei adversário tem como principal apoiadora a rainha e pensar na possível implicação desse fato em termos psicanalíticos.
Para Fine, considerado como um todo, o xadrez representa a situação familiar, o que explicaria o fascínio de muitos pelo jogo. Perdidas em pensamento, essas pessoas encontrariam, no tabuleiro, uma forma de trabalhar, fantasiosamente, o que nunca puderam fazer na realidade.
Nota. O Complexo de Édipo é estudado pela Psicanálise. De acordo com a Infopédia, ele envolve um conflito inconsciente; portanto, a rivalidade descrita não deve ser entendida literalmente. O estudo desse complexo pode contribuir para sua resolução, tornando as pessoas mais saudáveis e felizes. ∎
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