O jornalista inglês Daniel Johnson é o autor do excelente livro Rei Branco e Rainha Vermelha, que explica a dimensão política que o xadrez ganhou durante a Guerra Fria.

O motivo é fácil de se compreender: os Estados Unidos queriam mostrar superioridade em relação à União Soviética, e vice-versa. Havia vários campos para se mostrar essa superioridade, por exemplo: na educação (o que resultou em reformas educacionais para melhorar o ensino), na tecnologia (o que resultou na corrida espacial), na indústria bélica (o que resultou na corrida armamentista) e nos esportes. Nesse último campo, ambos investiram pesadamente no treinamento de atletas para eventos como as olimpíadas.
No xadrez, a rivalidade também se intensificou. A URSS dominava esse cenário, com um número muito maior de clubes de xadrez, de federados e de jogadores de elite. Além disso, houve uma sequência de campeões mundiais soviéticos, começando com Mikhail Botvinnik, em 1948 (o campeão mundial anterior, Alekhine, nasceu na Rússia, mas como jogador de xadrez ele representava a França). Depois de Botvinnik, outros enxadristas soviéticos que detiveram o título foram Smyslov, Tal, Petrossian e Spassky, nessa ordem.
Tentando diminuir a desvantagem, nos Estados Unidos, o incentivo ao xadrez aumentou, embora o investimento nesse esporte tenha sido tímido em comparação a outras áreas disputadas com os soviéticos.
O sonho americano de ser o berço de um campeão mundial de xadrez parecia distante. Foi então que o jovem Robert James Fischer, ou simplesmente Bobby Fischer, ganhou destaque.

Ele aprendeu a jogar xadrez com seis anos, ensinado por sua irmã mais velha, e ficou obcecado. Aos 14 anos, tornou-se campeão americano, o mais novo até hoje. Aos 15, sua mãe descendente de poloneses, Regina, que simpatizava com o comunismo apesar da perseguição macarthista (a “caça às bruxas” comunista iniciada pelo senador Joseph McCarthy), escreveu para o primeiro-ministro da URSS Nikita Kruschev pedindo que o filho fosse convidado para um festival da juventude em Moscou. O convite foi enviado. Ao pisar em solo russo, o prodígio americano exigiu jogar contra o então campeão mundial Botvinnik, o que a organização do festival negou. Fischer então insultou os anfitriões, sendo expulso em seguida.
No entanto, Bobby não deixou de enfrentar os russos no tabuleiro pouco depois. O título de campeão americano lhe garantiu uma vaga em seu primeiro torneio Interzonal, em 1958. Esse torneio servia para selecionar participantes do Torneio de Candidatos, cujo vencedor ganhava o direito de jogar contra o campeão mundial reinante e, caso vencesse, se tornar o novo ocupante do trono.
No Interzonal de 1958, Fischer terminou em quinto lugar, o que o decepcionou, mas lhe rendeu o título de Grande Mestre — foi o mais jovem a conquistar a faixa-preta do xadrez na época — e uma vaga no Torneio de Candidatos, no qual foi eliminado. Em 1962, o mesmo se repetiu: ele teve uma boa colocação no Interzonal e avançou para o Torneio de Candidatos, sem conseguir vencer este último e poder desafiar o campeão mundial. Bobby acusou os soviéticos de aproveitar o formato “todos-contra-todos” da competição para manipulá-la, combinando resultados de partidas para garantir que, ao final, sempre um “camarada” tivesse mais pontos do que os demais participantes e vencesse.
Por essa razão, Fischer decidiu boicotar as próximas disputas pelo título mundial, e só mudou de ideia na década seguinte (o que ele fez nesse meio tempo? Pouco se sabe). Em 1970, Pal Benko, o então campeão americano, cedeu sua vaga no Interzonal de Palma de Mallorca para Fischer, que conquistou o primeiro lugar e se classificou para o Torneio de Candidatos de 1971.
Nas quartas de final (essa edição do torneio já estava no formato mata-mata, em parte para evitar as trapaças denunciadas por Bobby), Fischer fez 6 a 0 contra Mark Taimanov; na semifinal, fez 6 a 0 contra Bent Larsen; e, na final, fez 6½ a 2½ contra Tigran Petrosian. Após esse rendimento devastador, ele estava apto a jogar contra o então campeão mundial, o russo Boris Spassky.

Foi o ponto culminante da rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética no xadrez. Enquanto o mundo aguardava ansiosamente a abertura do evento, nos bastidores, por mais de uma vez ele quase foi cancelado. O principal motivo foi a animosidade acerca do local de realização do match. Várias cidades se voluntariaram para sediá-lo; após negociações, a Federação de Xadrez dos EUA, representada pelo coronel Ed Edmondson, concordou em as partidas se dividirem entre Belgrado (na Iugoslávia), que tinha oferecido o maior prêmio e, por esse motivo, era a opção preferida de Fischer; e Reiquiavique (na Islândia), que tinha oferecido um prêmio menor, mas era a opção preferida de Spassky — saiba daqui a pouco o porquê.

O pagamento do prêmio também seria dividido entre as duas cidades, e ficou estipulado em 138 mil dólares, a média dos valores oferecidos por Belgrado (US$ 150 mil) e por Reiquiavique (US$ 125 mil).
Parecia que as condições do confronto tinham se resolvido. Porém, ao tomar conhecimento do acordo assinado pela Federação dos EUA, Fischer ficou furioso, se manifestou dizendo que não jogaria na Islândia e exigiu cuidar pessoalmente das futuras negociações relacionadas ao Campeonato Mundial.
Os iugoslavos, ao saberem da recusa de Fischer, entraram em pânico, pois já tinham investido enormemente no evento e esperavam recuperar o dinheiro com a venda dos ingressos. Para não ficarem no prejuízo, eles exigiram um depósito da Federação de Xadrez dos EUA como garantia para caso o jogador não aparecesse. O depósito não foi realizado, fazendo com que os iugoslavos paralisassem os preparativos para o Campeonato Mundial. Quanto aos islandeses, estes ignoraram a declaração de Bobby e se impuseram, exigindo que metade do match acontecesse lá.
O presidente da Federação Internacional de Xadrez (FIDE), Max Euwe, respondeu a Fischer com um ultimato: ou ele aceitava os termos (jogar parte do match na Iugoslávia e o restante na Islândia) até uma determinada data, ou abria mão de seu direito como desafiante do título mundial.
O que Fischer fez foi o que qualquer celebridade faria: jogou a situação nas mãos de seu advogado. Este, para ganhar tempo, emitiu uma nota tranquilizadora, declarando que seu cliente estava pronto, desejoso e esperando para jogar. Mas isso não era o que Euwe tinha exigido e, quando o prazo para Fischer aceitar os termos expirou, os soviéticos pressionaram para que o presidente da FIDE cumprisse sua ameaça.
Foi então que a Federação de Xadrez da Islândia teve uma ideia: aproveitou a hesitação dos iugoslavos para se oferecer como abrigo para o match inteiro. Tudo continuaria perfeitamente: Fischer e Spassky compareceriam em Reiquiavique, jogariam suas partidas, e, ao final, a cidade pagaria o prêmio de US$125 mil, a ser repartido entre o campeão (5/8) e o vice-campeão (3/8).
Euwe deu uma última chance para Fischer aceitar a proposta, e este finalmente concordou. Ou seja, no fim da história, a teimosia do norte-americano serviu apenas para diminuir o valor do prêmio, e ele teve de aceitar jogar a totalidade das partidas onde não queria.

Com a sede definida, a abertura do match ficou marcada para junho de 1972. Spassky, que nasceu em Leningrado, numa latitude próxima a de Reiquiavique, já estava acostumado às temperaturas baixas o ano todo e aos dias com claridade prolongada no verão, que vai de junho a agosto no Hemisfério Norte. Ele chegou com antecedência à cidade.
Quanto a Fischer, o dia da abertura ficava cada vez mais próximo, e nenhum sinal dele. O motivo: uma nova disputa tinha surgido, novamente por causa de dinheiro. O dono de uma emissora de TV norte-americana havia comprado os direitos de transmissão das partidas. Fischer alegou que nunca tinha autorizado a exibição de sua imagem na televisão e queria uma fatia do valor arrecadado com a venda dos direitos.

O dia da cerimônia de abertura chegou, sem a presença de Bobby. A delegação russa pressionou Spassky a exigir a desqualificação do americano, mas o russo negou. Ele realmente queria que o match acontecesse.
A embaixada americana foi acionada e enviou um telegrama a Washington, advertindo que o não comparecimento de Fischer arruinaria a imagem dos Estados Unidos na Islândia, um importante ponto estratégico. O assunto chegou ao conhecimento do secretário de estado americano, Henry Kissinger, que telefonou para Fischer e gastou horas o adulando e repetindo que a América precisava dele. Mas não conseguiu convencê-lo a embarcar no avião rumo a Reiquiavique, e nunca conseguiria com o discurso que fez.
O fato é que Bobby tinha uma personalidade misantrópica. Com o passar dos anos, seu ódio pelos Estados Unidos cresceu e ficou do mesmo tamanho que seu ódio pelo socialismo. Em 2001, após o ato terrorista de 11 de setembro, ele concedeu uma entrevista a uma estação de rádio, aplaudindo o ataque sofrido pelas torres gêmeas. Já em 1972, a única coisa que o movia era o xadrez e tudo o que esse esporte podia dar. Não havia sentimento patriótico nele. Como Kissinger não lhe ofereceu recompensa financeira, não houve acordo.
Finalmente, um ousado magnata britânico, Jim Slater, quis se promover entrando no caso. “Quero tirar o problema do dinheiro da frente de Fischer e ver se ele tem alguma outra questão”, disse o milionário. E fez uma doação dobrando o prêmio para 250 mil dólares. “Se ele não está com medo de Spassky, então eu eliminei o elemento do dinheiro”, concluiu.
A doação de Slater persuadiu Fischer a pegar um voo para Reiquiavique. Ele ainda conseguiu chegar no local antes da data da primeira partida, mas, assim que chegou, foi dormir e perdeu o sorteio para decidir quem começaria com as brancas e quem com as pretas, sendo substituído por seu auxiliar.
O segundo de Fischer em 1972 era William Lombardy, amigo feito em torneios nos Estados Unidos, Grande Mestre e sacerdote católico romano, cuja participação no match foi explorada pela mídia como uma metáfora do Ocidente cristão versus o Comunismo ateu. Quem não gostou de ver o padre no sorteio foi Spassky, que estava sofrendo pressão de seus superiores para reivindicar vitória diante da deselegância de seu adversário. No entanto, o russo continuava querendo jogar contra o desafiante norte-americano.

Diante da fraqueza de Spassky, Fischer continuou impondo sua vontade e fazendo exigências. Antes da primeira partida, ele já havia forçado os organizadores a trocar sua cadeira, o tabuleiro, a iluminação, a mesa de jogo e muito mais. Também chegou atrasado à primeira partida, a qual acabou perdendo. Fischer responsabilizou as câmeras de TV pela derrota, alegando estas terem tirado sua concentração, e recusou-se a continuar jogando a menos que elas fossem removidas. O dono da emissora que comprara os direitos de transmissão do match protestou. As câmeras foram escondidas, mas continuaram, de modo que Fischer não compareceu ao segundo jogo. As câmeras foram então retiradas totalmente, sem que o norte-americano aparecesse, e o árbitro não teve remédio a não ser declarar sua derrota na segunda partida.
Provavelmente, Fischer pretendia usar sua desvantagem de dois pontos acumulada logo no início do match como um gambito psicológico contra Spassky. Essa confiança do americano em si mesmo fez com que o russo desenvolvesse um complexo de inferioridade que pode o ter sabotado nos próximos jogos.
Antes da terceira partida, Fischer fez mais uma exigência, a de que ele e Spassky jogassem numa pequena sala, longe dos espectadores. Os islandeses se queixaram, pois já tinham vendido ingressos antecipados, mas Spassky, sem consultar sua equipe, imediatamente concordou. Foi uma concessão fatal: Kasparov, comentando esse episódio, disse que Fischer “começou a ditar as condições fora do tabuleiro e depois também nele”.
A mente de Fischer, porém, não estava menos tumultuada do que a de seu adversário. Logo no início do terceiro jogo, o americano circulou pela sala em busca de câmeras escondidas. Spassky protestou. O árbitro teve de quebrar as regras, parando o relógio de Spassky para acalmar os jogadores e convencê-los a voltar aos assentos. Com o emocional mais fragilizado entre os dois, Spassky perdeu a partida.
A partir desse ponto, Fischer dominou o match. A equipe de Spassky devolveu as estranhas obsessões de Fischer na mesma moeda, colocando os americanos sob suspeita. Os soviéticos levantaram hipóteses como hipnose, telepatia, manipulação da comida e espionagem das análises para prejudicar Spassky. Foram tirados raios-X da cadeira importada de Fischer e das lâmpadas da sala de jogo, mas nada de mais foi encontrado.
O match prosseguiu e, ao final, Fischer perdeu apenas mais uma partida, vencendo com um placar de 12½ a 8½ e sangrando-se campeão mundial de xadrez. Spassky, com a derrota, sofreu sanções do governo soviético, mas escapou de consequências mais graves obtendo a cidadania francesa e mudando-se para a França.
Quanto a Fischer, a chegada do tão cobiçado triunfo sobre a máquina soviética fez o xadrez competitivo perder sentido para ele. A estrela americana negou jogar contra o desafiante Anatoly Karpov, alegando principalmente desentendimentos com o formato do campeonato mundial, definido pela FIDE. Ele se tornou uma figura reclusa e discreta. Só vinha à tona para destilar sua misantropia na mídia, com declarações temerárias.
Em 1992, houve um rematch entre Fischer e Spassky, com palco na Sérvia de um dos últimos ditadores soviéticos, Slobodan Milošević. O confronto foi novamente vencido pelo americano, mas lhe custou uma acusação de violar sanções dos EUA contra a Iugoslávia (na época, a Sérvia fazia parte da Iugoslávia). Fischer fugiu, indo parar no Japão, onde foi detido por estar com um passaporte vencido. Finalmente, em 2005, a Islândia lhe ofereceu asilo. Ele morreu lá em 2008. ∎
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